quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

A PROPÓSITO DE "VIAGEM À RODA DO MEU NOME"

Abílio é o narrador e a personagem central e até se considera um rapaz perfeito. No entanto, enfrenta uma crise de identidade provocada por um nome que detesta e que lhe traz vergonha (por ser motivo de troça dos colegas quando a tia Constancinha, com um bigode que pica mais do que o do gato, lhe chama Abilinho) e cuja origem toda a família evita explicar. Quando pede explicações, o pai de Abílio assobia ou faz bolinhas com o pão (se estão à mesa), a mãe vai fazer um telefonema, a avó queixa-se do reumático e o avô resmunga que precisa de mudar de lentes. Isto é, todos fogem do assunto e ninguém quer explicar o motivo daquele nome dado a uma criança que, antes de nascer, se iria chamar Anelise e depois Sílvia.
A ação desenrola-se em dois planos apresentados em capítulos alternados e com grafias diferentes:
1. A viagem de autocarro de regresso a casa depois da visita à família, na Gafanha, numa manhã fresca de verão. Nesta altura, Abílio já não se chama assim pois decidiu chamar-se Luís, um nome normal (ou seria por causa da sua paixão, a Luísa?):
“E ainda por cima hoje a tia Constancinha não encontrou nada melhor para me chamar do que Abilinho. E diante dos meus colegas, lá na escola. Linda figura que eu fiz, não haja dúvida! Por tudo isto é que eu aviso: a partir de agora só respondo pelo nome de Luís!” pág. 30
“Sentámo-nos no chão do meu quarto e lá lhe contei toda a minha tragédia, a minha heroica decisão de matar o Abílio para fazer nascer o Luís, e a luta titânica para impor a minha vontade.” pág. 80
Durante a viagem:
• Luís (Abílio) relembra os melhores momentos passados na Gafanha, algo que ele nunca tinha vivido na cidade:
- o vitelo acabado de nascer da vaca Catraia
- os campos de girassóis
- as pirâmides de sal
- o voo dos picanços para apanharem peixe
- o salto das tainhas na maré cheia
- o riso da menina Isabelinha.
• Conhece uma estranha mulher de chapéu de palha vermelho cheio de frutos coloridos e do lenço cor-de-rosa. Num prolongado monólogo, a senhora conta-lhe várias histórias, que o fazem crescer, sobre:
- o marido Bernardino que conheceu no casino de Espinho e não a deixava ler durante as viagens.
- a profissão do marido, conhecido por toda a gente, um mágico famoso que trabalhava em vários hotéis com o coelho Inácio e a pomba Felisberta.
- o verão passado na Ericeira.
- a velhice que incapacita.
- a vida e a morte.

2. Os acontecimentos que levam à crise de identidade provocada pela recusa de um nome que, no entender da personagem, não se ajusta à sua personalidade e dificulta a sua relação com os colegas.

São temas abordados na obra com muito humor, humanismo e grande sensibilidade poética:
• As relações familiares
• A complexa integração dos adolescentes no meio social
• A saudade
• A velhice (pág.115)
• A doença e a morte:
“Não acredites quando te disserem que as pessoas morrem. As pessoas nunca morrem. Pelo menos aquelas de quem gostamos. Estão sempre todas ao pé de nós.” Pág. 67
“Todos nós temos a nossa nuvem. Quando morrermos, é para lá que vamos.” pág. 130
“Sempre que entro numa camioneta tenho saudades do Bernardino. (…) Mas tenho de me habituar a viver assim, a dizer-lhe adeus lá para a nuvem onde ele está. Que o Bernardino sempre me disse: “Temos de saber viver com a vida e com a morte, tal como vivemos com o nosso corpo, e com o nome que temos.” pág. 140
• O mistério da vida:
“De repente, como num vulcão, qualquer coisa rebentou de dentro da Catraia, e diante dos nossos olhos maravilhados um vitelo estava ali, e já a querer-se endireitar-se nas pernas.”
“Foi um segredo que o meu avô me contou. Ele diz que sempre que alguém nasce a gente é capaz de ouvir crescer o mundo.”

A crítica social está presente ao longo da obra:
• A televisão e os jornais:
“O que há hoje na televisão, ó…” / As desgraças do costume, avô.” pág. 31
“ - E a mãe que não acreditasse nas histórias todas que esse aparelho manda para o ar- disse o meu pai.” pág. 45
“- Pronto, é para isto que a televisão serve: para nos pôr todos zangados uns com os outros.” pág. 46
“- Por que é que a mãe não escreve uma carta para os jornais, a protestar?” (…) “_ Só essa agora me faria rir, palavra de honra! Uma carta para os jornais! Quando fosse publicada, ou já a escola tinha caído toda, ou já estava outra nova em seu lugar…”
• Os problemas que não se resolvem:
“Há quem jure a pés juntos que esta escola, desde que foi inaugurada, já lá vão 90 anos, nunca viu obras.” “Vamos lá ver se isto não cai hoje.» pág. 43
“_ Isto é um disparate. Até é um crime, tanto tempo à boa vida. Depois queixam-se que os jovens apanham vícios. Três meses de descanso, onde é que já se viu, até se desabituam de trabalhar.” (…) “– Só neste país.” pág. 72
• Crise da sociedade:
“- É a nossa vez de Quê?” (…) “-De fazer esta coisa andar melhor do que tem andado.” pág. 76
“- (…) Os transportes públicos neste país estão uma miséria, uma verdadeira miséria!
-Estão como os ordenados que nos pagam…”

(as páginas indicadas são da 2ª edição, 1987)

Sem comentários:

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...